O desvio de função é uma irregularidade entre o que foi registrado no contrato de trabalho e as atividades que o funcionário desempenha na prática. Você sabe o quanto isso pode te prejudicar e quais seus direitos?
Na rotina da empresa você pode substituir um colega ou ajudar num projeto sem que isso configure propriamente um desvio de função. No entanto, o dever de colaboração do trabalhador é pontual e esporádico, diferente do empregador usar a mão de obra do funcionário em uma atividade para a qual ele deve contratar outro.
Isso fica mais fácil de entender trazendo algumas situações que podem ocorrer no dia a dia de uma organização. Por exemplo:
No mercado atacadista o conferente de estoque adoeceu e o gerente pediu a ajuda do repositor, por três dias, para que a checagem continuasse sendo feita.
Já na padaria, o patrão encarregou o balconista de fazer a pesagem e etiquetagem dos bolos, substituindo o auxiliar do confeiteiro que se ausentou durante uma semana.
Percebe que houve um curto espaço de tempo onde o empregado ajudou a empresa, um momento de colaboração?
Mas se a empresa agir dessa maneira, de forma habitual, é bem provável que o desvio de função resulte em prejuízos financeiros ao colaborador.
Na maioria das vezes o funcionário acaba assumindo uma tarefa para a qual deveria ser melhor remunerado, fazendo com que o desvio de função tenha reflexos trabalhistas e previdenciários.
O que é desvio de função CLT?
O desvio de função CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) é a situação em que um empregado é designado para realizar tarefas que não fazem parte das suas atribuições originais, conforme estabelecido no contrato de trabalho ou na descrição de cargo. Em outras palavras, ocorre quando o trabalhador é deslocado para desempenhar funções diferentes daquelas para as quais foi contratado.
Isso pode ocorrer por várias razões, como mudanças nas necessidades da empresa, reestruturação organizacional ou falta de pessoal. No entanto, é importante notar que desviar um funcionário de suas funções originais sem o consentimento dele pode ser considerado uma prática injusta e, em alguns casos, pode ser motivo para a rescisão do contrato por justa causa.
Para entender a gravidade do desvio de função é preciso compreender a importância dos registros feitos em sua Carteira de Trabalho.
Qualquer alteração na prestação de serviço que conste na CTPS (Carteira de Trabalho e Previdência Social) tem que ser realizada em comum acordo entre empregado e empregador e registrada nesse documento.
Não é isso que acontece nos casos de desvio de função. Normalmente o empregado começa a desempenhar uma tarefa diferente para a qual foi contratado, recebendo menos do que deveria, sem a devida alteração contratual registrada.
Se um funcionário acredita ser vítima de desvio de função, ele pode buscar orientação junto aos recursos humanos da empresa e consultar uma advogada trabalhista para entender seus direitos e opções.
Em alguns casos, pode ser possível negociar uma solução com o empregador para resolver a questão de maneira satisfatória para ambas as partes.
Descubra se você está em desvio de função
Você sabia que existe um tipo de cadastro para consulta no site Ministério do Trabalho e Previdência tratando das ocupações e das atividades compreendidas em cada função?
A Classificação Brasileira de Ocupações mostra a realidade das atividades profissionais em nosso país. É uma boa base de pesquisa para entender se o trabalhador está tendo sua função desviada.
Você mesmo pode fazer essa consulta. Vou te dar o caminho para acessar essas informações:
Vá ao Portal Emprega Brasil;
Procure na lista à esquerda a coluna TRABALHADOR;
Clique onde está escrito Ocupações (CBO);
Digite a função registrada em sua carteira de trabalho.
Lá vai aparecer o código, os títulos e descrição sumária das suas atividades profissionais. Se você colocar na pesquisa, por exemplo, auxiliar de confeiteiro é isso que aparecerá:
Na descrição aparecem as atribuições da função: ajudar outros profissionais no pré preparo, preparo e processamento de alimentos, na montagem de pratos, verificação da qualidade dos gêneros alimentícios diminuindo riscos de contaminação, e orientação de que essas pessoas devem trabalhar conforme as normas e procedimentos técnicos de qualidade, segurança, higiene e saúde.
Como disse, é um bom ponto de partida, mas o dia a dia na empresa e testemunhas dos fatos são os indicativos consistentes para a Justiça.
Desvio de função: o que diz o Artigo 468 da CLT
Vamos observar agora como a CLT trata o desvio de função no trabalho. Essa atitude errada, mas comum nas empresas.
O Artigo 468 da CLT trata da alteração das condições estabelecidas nos contratos individuais de trabalho. A redação do artigo é a seguinte:
Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
Esse artigo estabelece que qualquer alteração nas condições do contrato de trabalho só pode ocorrer se houver acordo mútuo entre o empregador e o empregado. Além disso, a mudança não deve causar prejuízos diretos ou indiretos ao empregado. Caso contrário, a cláusula que impõe essa alteração pode ser considerada nula.
Portanto, se um empregador tentar realizar uma mudança nas funções do empregado sem o consentimento deste, isso pode violar o Artigo 468 da CLT. Esse artigo busca proteger os direitos dos trabalhadores e garantir que as alterações nas condições de trabalho sejam feitas de maneira justa e acordada entre as partes.
Um alerta: a lei não considera como alteração unilateral a retirada de gratificação em exercício de função de confiança. Essa é uma decisão exclusiva do empregador, sem direito ao pagamento de gratificação correspondente.
Desvio de função e acúmulo de função
É preciso cuidado para não confundir o desvio de função com outra situação atípica ao contrato de trabalho: o acúmulo de função.
O acúmulo de função no trabalho refere-se à situação em que um funcionário é sobrecarregado com responsabilidades e tarefas que vão além das especificadas em sua descrição de cargo ou contrato de trabalho. Em outras palavras, o trabalhador está executando funções que não fazem parte de suas atribuições originais, e isso pode ocorrer por diversos motivos, como falta de pessoal, reestruturação organizacional, entre outros.
Ou seja, no acúmulo o trabalhador exerce mais funções do que para aquilo que foi contratado, enquanto no desvio ele exerce uma função diferente, mais complexa, de maior responsabilidade e pela qual deveria ser melhor remunerado.
O fato é que o desvio de função gera muita discussão na Justiça do Trabalho porque, apesar da nossa CLT não tratar especificamente dessas situações, elas estão previstas em acordos coletivos das categorias.
Desvio de função: 3 exemplos de causas ganhas na Justiça
Trouxemos 3 exemplos reais de ações trabalhistas ganhas na Justiça para você poder entender melhor os direitos que o trabalhador perde por desvio de função e o que é possível provar em um processo.
Nessas histórias só os nomes são fictícios.
1° exemplo de desvio de função
O primeiro exemplo é o da Ana, operadora de caixa bancário que passou a exercer de fato o cargo de Gerente Assistente, com maiores responsabilidades e pela qual deveria ter recebido um salário maior.
Na Justiça, Ana comprovou que durante todo o período reclamado, de quase 6 anos, nunca ocupou um guichê de Caixa. Trabalhava em setor distinto, específico para a abertura de contas, dando suporte aos gerentes, abrindo contas, vendendo produtos e participando das reuniões dos Comitês de Crédito.
A prova testemunhal de uma ex-colega ajudou Ana a comprovar que durante todo o período tratado ela nunca ocupou um guichê de Caixa, apontando inclusive o nome dos outros funcionários nessa função. A justiça reconheceu o desvio funcional e Ana pode receber os seguintes direitos pelos 5 anos não prescritos:
Pagamento das diferenças salariais e reflexos no período respectivo, fixados em R$ 2.000,00 mensais;
Anotação da função na Carteira de Trabalho;
Reflexo das diferenças em descanso semanal remunerado, férias com 1/3, 13° salários e FGTS.
2° exemplo de desvio de função
Outro caso de uma trabalhadora exercendo cargo de maior responsabilidade ou esforço (que pode ser físico ou intelectual) é o da Paula, admitida para a função de engenheira ambiental em uma obra.
Como provado por depoimento de 3 testemunhas, na prática, Paula atuava como gerente de obra fazendo pagamento de funcionários, contratação de serviços terceirizados, aquisição de insumos, era responsável pela guarda de equipamentos e recebimento de depósitos bancários para custeios do empreendimento.
Diante da incompatibilidade das funções de engenheira ambiental e gerente de obras, bem como o fato desta acumulação não estar prevista em contrato, ficou configurado que houve o desvio de função ao longo do extinto contrato de trabalho, condenando a empresa a pagar:
Gratificação de função pelo exercício de cargo gerencial acrescido de 40% em relação ao salário efetivo;
Pagamento de diferenças salariais;
A alteração do registro na CTPS.
3° exemplo de desvio de função
Antônio foi contratado por uma indústria frigorífica como ajudante de produção, mas desde a admissão era operador de máquinas e equipamentos. A anotação da alteração de contrato só foi feita passado mais de um ano.
Depois, Antônio passou a exercer a função de auxiliar de gerente de produção do setor de abate, sem que o contrato de trabalho fosse alterado novamente.
Um tempo depois, Antônio ficou doente, se afastou para tratamento de uma hérnia inguinal e ao retornar do auxílio-doença do INSS foi rebaixado de função. Só então Antônio tomou a decisão de acionar a empresa na Justiça.
O contrato de trabalho fora descumprido duas vezes, e na segunda vez a empresa cometeu dois erros:
1. Desvio de função, não pagando ao empregado o valor correspondente à função de auxiliar de gerente de produção, nem tampouco ter anotado referida função na CTPS;
2. Rebaixar o empregado para função com menor ganho salarial.
Resultado: a Justiça condenou a empresa ao pagamento de diferenças salariais desde a admissão do funcionário, com reflexos no FGTS + 40%, e a integração do reajuste na base de cálculo das horas extras.
Conclusão
Orientados desde o início por uma advogada especialista, esses três trabalhadores obtiveram o reconhecimento do desvio de função na Justiça e os direitos trabalhistas reclamados.
Você também pode ter acesso a esses serviços e contar com toda assistência técnica de um advogado online especialista em direito do trabalho, de onde estiver.
Inclusive, saiba que é possível processar a empresa sem se desligar dela.
Desvio de função no trabalho: quais são meus direitos?
Na Justiça, o trabalhador em desvio de função pode requerer os direitos descumpridos pelo empregador e receber pelos últimos 5 anos, o tempo de prescrição para fazer uma reclamação trabalhista.
Ao reclamar o desvio de função, o objeto do contrato de trabalho tem os mesmos efeitos de uma promoção, com a equiparação salarial entre a função que desempenhava e a que estava contratado e o reflexo dessas valores nas verbas trabalhistas: 13°, férias, FGTS, horas extras, contribuição previdenciária, multas e indenizações.
Todas essas verbas rescisórias passam a ser calculadas com base no salário maior.
As testemunhas são fundamentais para comprovar o dia a dia da empresa e se o reclamante desempenhava função diferente da que consta no contrato de trabalho.
A testemunha ideal é aquela que conhece os direitos que você está reclamando porque trabalhou no mesmo período na empresa e não irá se beneficiar direta ou indiretamente da decisão no seu caso.
Lembre-se: a obrigação de provar o desvio de função é do trabalhador. Para isso é importante contar com conhecimento do advogado especialista em direito do trabalho.
Por Priscila Arraes Reino, Advogada previdenciária e trabalhista especialista em doenças ocupacionais e Síndrome de Burnout. Formada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco (2000).
Por Priscila Arraes Reino
Original de Arraes & Centeno
Fonte: Jornal Contábil