Por: Alexandre Machado Bueno e Anelise Silva de Assis
É impossível não identificar os efeitos causados pela pandemia do corona vírus (Covid-19) em nossa sociedade, afinal, para nos adaptarmos à nova realidade, fomos obrigados a mudar a forma como nos comunicamos, compramos e nos socializamos. Ao longo desse período, estranhamente a Covid-19 já faz parte da nossa rotina.
Como parte dessa triste derrocada, as relações contratuais também foram impactadas de forma abrupta, em todos os setores comerciais, transformando em um grande martírio a vida de milhares de empresários brasileiros, que buscam soluções para os problemas enfrentados por suas empresas, principalmente devido ao aumento exponencial dos custos de produção de diversos setores, alavancado pela alta do dólar e falta de commodities fundamentais como aço, ferro, cobre, papel e outros principais insumos para a produção nacional.
Como resultado desse cenário, os empresários dos mais diversos ramos econômicos, alguns de forma mais acentuada que outros, se veem impactados com a situação única causada pela Covid-19 em todas as suas relações contratuais, em face de fornecedores, clientes e até mesmo do próprio consumidor final, no caso de vendas B2C (Business to Consumer).
Para tentar diminuir os prejuízos, é fundamental a definição de uma estratégia concreta perante seus fornecedores e clientes, de forma a reequilibrar e reajustar as relações contratuais à nova realidade. É uma questão vital para a manutenção das atividades comerciais, e, assim como em toda negociação, é necessário empenho de ambas as partes para que seja alcançado um denominador comum, com efeitos práticos nos contratos.
No âmbito das relações contratuais privadas, como suporte a essas negociações, está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1.179/2020, de autoria do Senador Antônio Anastasia, que institui normas de caráter transitório e emergencial para regular as relações jurídicas no âmbito privado em virtude da pandemia, entre elas, a suspensão de prazos prescricionais e decadenciais, vedação do despejo de locatários em situação de fragilidade econômica, flexibilização de determinadas condutas anticoncorrenciais, entre outras medidas visando trazer objetividade e segurança jurídica.
No entanto, como agir quando do outro lado da mesa se encontra a Administração Pública figurando como contratante, por meio de um contrato administrativo legalista, não pragmático e protetivo, em que muitas vezes a boa vontade das partes encontra limitações para alcançar uma solução?
De fato as tratativas com a Administração Pública, de modo geral, costumam ser complexas, adjetivo “gentil” para não dizer engessadas e burocráticas, principalmente pela obrigatoriedade de a Administração agir, em todos os seus atos, através de procedimentos administrativos internos, com ritos e formas previstos em lei, o que torna o pleito demorado em decorrência das inúmeras fases internas.
Além disso, a Administração Pública tem o dever de resguardar o interesse público em suas ações, princípio basilar que rege todas as contratações, e que permite que a Administração se utilize de cláusulas para defender seus interesses, como rescisão e alteração unilaterais, aplicação de sanções e demais ações protetivas.
No entanto, o poder inerente à atuação da Administração Pública não significa um cheque em branco para agir de forma abusiva, imputando à outra parte todo o ônus pelo negócio firmado. A legislação por si só garante à parte contratada o direito de pleitear a possibilidade de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato em determinadas situações, como prevê o art. 65, alínea d, da Lei 8.666/1993 e art. 81, inciso VI, da Lei 13.303/2016.
O Tribunal de Contas da União, por exemplo, já entende como razoável e justo possibilitar o reequilíbrio econômico-financeiro mediante a comprovação dos custos, através de documentação pertinente. Aliás, é possível observar esse entendimento no Acórdão 12460/2016, de Relatoria do Ministro Vital do Rêgo, que assim dispôs:
“Quanto ao mérito do presente recurso, assevero que o entendimento majoritário desta Corte de Contas é no sentido de que o reequilíbrio econômico-financeiro de contrato, nos termos do que prevê o art. 65, II, ‘d’, da Lei 8.666/1993, deve estar lastreado em documentação que comprove, de forma inequívoca, a alteração dos custos dos insumos do contrato, de sorte que esta alteração seja de tal ordem que inviabilize a execução do contrato. Ademais, deve a referida alteração ter sido causada pela ocorrência de uma das hipóteses previstas expressamente no citado dispositivo legal, a exemplo de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”.
Se existe a previsibilidade legal, mesmo que rasa, bem como posicionamento contundente sedimentado até mesmo pelo Tribunal de Contas da União, por qual razão é tão difícil negociar com a Administração Pública nesse sentido? A maioria das empresas consegue demonstrar de forma inequívoca os impactos da Covid-19, mas encontra dificuldades em receber o aval da Administração, afinal, o texto vigente tem caráter optativo unilateral, que, em conjunto com a própria rigidez da Administração, torna moroso e complexo todo o processo.
O cenário catastrófico trazido pela pandemia no último ano gerou reflexos no Legislativo Nacional, e nesse caso fazemos referência ao Projeto de Lei Ordinária nº 2.139/2020, também de autoria do Senador Antônio Anastasia, e que trata do regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas contratuais da Administração Pública, no período da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do corona vírus.
O referido PL, já em seu art. 1º, § 2º, deixa clara sua principal justificativa : “O regime instituído por esta Lei se aplica à mitigação dos efeitos decorrentes da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do corona vírus (Covid-19) sobre os contratos administrativos, de qualquer gênero e objeto, vigentes na data de publicação desta Lei, independente do momento em que seja necessária sua aplicação, inclusive após o término do estado de calamidade pública ou situação de emergência, desde que referente aos impactos por ela ocasionados aos contratos”.
Como se vê, o Legislativo busca mitigar os efeitos negativos da Covid-19 nos contratos públicos, que desequilibram os custos da contratação, bem como geram atrasos nos fornecimentos de serviços e produtos, concedendo assim uma forma de descomplicar as renegociações desses contratos, o que por si só já pode ser considerado um marco legislativo, pois é notável o interesse em adotar medidas concretas e reativas em face de um evento gerador de instabilidade contratual, visando ao reequilíbrio e sustentabilidade dos contratos firmados com a Administração Pública.
O Projeto de Lei nº 2.139/2020 define regras e formas para que a Administração Pública Direta, Indireta, Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista revisem os contratos firmados com os particulares que, comprovadamente, foram impactados pela Covid-19. Para a revisão dos contratos administrativos, o art. 2º do Projeto de Lei estabelece que os contratados poderão, voluntariamente ou a pedido da Administração, apresentar um plano de contingência para assegurar a continuidade da execução do contrato e preservar seu objeto essencial. Esse plano deverá estar acompanhado da (i) justificativa econômica, (ii) conter propostas para assegurar a continuidade do contrato, como revisão ou suspensão temporária de obrigações, postergação de investimentos ou alteração de metodologia da execução contratual, bem como (iii) evidenciar o risco de danos irreparáveis em caso de extinção antecipada do contrato.
A Administração, então, irá analisar o plano de contingência para proporcionar uma solução menos nociva ao interesse público e privado, visando trazer um equilíbrio econômico-financeiro contratual, podendo rever obrigações contratuais ou adotar medidas necessárias para minimizar os impactos da pandemia da Covid-19, como suspender a exigibilidade das obrigações e exequibilidade das sanções, alterar especificações ou quantidades do objeto do contrato e autorizar que o contratado promova a desmobilização de pessoas, equipamentos e estruturas alocados na execução do serviço, para garantir a continuidade da prestação de serviços. Nesses casos, o limite estabelecido pela Lei nº 8.666/1993, art. 65, § 1º, para acréscimos ou supressões, poderá ser ultrapassado para efetivação das medidas, desde que haja acordo entre as partes.
Nos contratos de concessão, seja comum, administrativa ou patrocinada, além das medidas citadas, a Administração poderá optar pela postergação, total ou parcial, da exigência de pagamento de encargos como de valores de outorga fixa ou variável, valores de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, encargos de fiscalização ou congêneres previstos no contrato e encargos setoriais previstos na legislação reguladora dos serviços do objeto do contrato, desde que não tenham natureza tributária. Esses valores posteriormente poderão ser utilizados para cobertura de custos e despesas incorridos na continuidade da prestação do contrato, ou poderão ser depositados em conta reserva para cobertura de despesas futuras, quando não utilizados de imediato.
Outro ponto importante do texto do Projeto de Lei, e de maior interesse dos empresários, é justamente a possibilidade do reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, isto porque, diferentemente de um pleito relacionado a revisão de cronogramas ou prazos de entregas, quando se modificam os valores contratuais, por consequência, a Administração Contratante deverá arcar com os valores referentes às diferenciações e ajustes, o que nunca foi bem aceito, pois esbarra justamente em ponto crucial para a Administração, sua receita.
Sob essa perspectiva, o art. 7º do Projeto de Lei prevê a possibilidade de alteração da equação econômico-financeira do contrato desde que comprovada, prevendo a seguinte situação: “Caberá ao contratado pleitear à Administração a alteração da equação econômico-financeira do contrato, expondo justificadamente as razões para tanto e formulando proposta quanto às novas condições a serem adotadas. § 1º O requerimento do particular deverá ser acompanhado de estudos econômicos que comprovem a inviabilidade da manutenção da equação econômico-financeira original, tal como o risco de danos irreparáveis em caso de extinção antecipada do contrato”.
O Projeto de Lei também prevê no seu art. 8º que as partes poderão rescindir o contrato amigavelmente caso fique comprovado, mediante demonstração econômico-financeira, não ser viável a continuidade do contrato em decorrência dos efeitos da pandemia, devendo ser adotadas na rescisão as regras de indenização previstas no contato e no regime legal originário, além de serem considerados os investimentos não amortizados ou os custos incorridos pelo contratado na prestação ou fornecimento ainda não remunerados, que deverão ser devidamente indenizados pela Administração, e eventuais descontos relativos a sanções aplicadas ao contratado ou os danos por este causados à Administração Pública, sendo preservado, em qualquer hipótese, o direito à ampla defesa e ao contraditório.
E por fim, outra inovação trazida pela PL é a possibilidade da adoção de meios alternativos de solução de conflitos, especialmente a arbitragem e mediação, nos casos de direitos patrimoniais, disponíveis, como questões relacionadas a revisão contratual, recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, cálculo de indenizações decorrentes de extinção, cessão ou transferência do contrato e inadimplemento de obrigações.
A tempestade gerada pela Covid-19 ainda está longe de terminar, com reflexos futuros ainda incertos, o que implica dizer que o Projeto de Lei, se aprovado, será um avanço importantíssimo nas relações contratuais firmadas com a Administração Pública e impactadas pelo corona vírus. Uma vez aprovada, as empresas poderão pleitear perante a Administração a revisão de seus contratos com maiores subsídios e garantias legais, de forma a assegurar a sustentabilidade contratual e equilíbrio econômico-financeiro mais efetivo.
Dentro desse contexto, de forma muito assertiva, no texto legislativo destinado às justificativas inerentes à propositura do Projeto de Lei, o legislador assim ponderou “nos contratos administrativos, tendo em conta sua especial característica, essencial à boa gestão pública, mas que pode dificultar indevidamente a adoção de soluções que possam mitigar – num primeiro momento – e equacionar, em definitivo, os efeitos adversos da pandemia da Covid-19. Sujeitos que são ao princípio da legalidade, esses contratos se submetem à aplicação de regras expressas em Lei e que foram pensadas para regular uma situação de normalidade social, algo que, infelizmente, não vivemos nesse momento tão sui generis”.
É perceptível um cenário positivo no futuro, independentemente de o Projeto de Lei ser ou não aprovado. O texto legislativo serve como termômetro e até mesmo um aviso direto aos gestores públicos de que revisar os contratos públicos impactados pela Covid-19, especialmente quanto aos seus valores, não se trata apenas de um mero apelo comercial em face de uma situação isolada. A revisão contratual é uma medida justa e necessária para mitigar os efeitos negativos causados pelo Covid-19 em toda a sociedade e, o mais importante, uma forma de manter a continuidade dos serviços públicos, que correm sérios riscos de serem prejudicados, garantindo assim a função social dos contratos administrativos e um fôlego a mais aos empresários.
Fonte: Administradores